O Impasse
Observava-lhe os seios pela menor fresta que houvesse em seus trajes, e ali se deliciava com a visão do pedaço da intimidade dela que havia roubado para si.
Sempre gentis, ela com ele e vice versa.
Ambos viviam a busca de um amor proibido, e a solução do impasse não estava em saber a cor das roupas íntimas, ou os detalhes da personalidade do outro. A visão que cada um tinha do outro, visto a timidez, o medo ao proibido por eles criado, era como a visão furtiva de um decote, onde o máximo que se podia ver, sentir, conhecer, eram momentos roubados da intimidade do outro.
Com este comportamento, cada um buscava ser o mais que podia ser, singularmente, ao invés de se desfrutarem plena e mutuamente, num receber e dar simultâneos. O casal se satisfazia com pequenos momentos roubados, como filigranas da moldura de um quadro, sem jamais o ver por inteiro.
Havia um quê entre timidez e o temor, que não deixa de ser outra maneira de dizer, que impedia que as palavras brotassem, que as peles se tocassem, que ambos se saciassem plenamente, ao invés disto, por espasmos, às fortuitas, na análise, buscavam um ao outro a compreensão, esquecendo o sentimento, na dúvida menosprezando o encontro e na análise deixando para trás a sensibilidade. Bastava um sorriso, que já havia sido dado e nem um nem outro aproveitou; um abraço apertado, que já tinha acontecido e os dois se recolheram ao canto, ou um beijo, que ambos se dão ao cumprimentar... mas nenhum ousava...
Estava ele perdido em seus pensamentos, meditado na ousadia profana do decote, que mais insinua do que mostra, e portanto leva a devaneios. Felizes são as mulheres, que podem usar o decote do sonhar dúbio, do recado incerto, do sentir calado, sem se expor ao ridículo. Faltava em alguém, ou nos dois, algo: a decisão.
Ele sabia que o passo da decisão leva ao desconhecido: pode tanto resultar enormes ganhos como pode conduzir a uma perda desastrosa, à ruína de tudo aquilo que até ali se construiu. É um parto, e não existe parto sem dor – e a dor do parto masculino é a convivência com a dúvida.
Pequenos sinais, muitas vezes são analisados, por um ou por outro, procurando um sinal visível que esclareça a dúvida e a indecisão que tanto assombram a alma. Alguns não querem dizer nada e interpretam tudo; o contrário também ocorre; afinal, não só de erros mas também de acertos é feita a vida.
Este medir de forças à distância com o desconhecido, como na pescaria de um grande peixe, era a sensação que o casal vivia. Os dois, excessivamente eruditos, haviam lido Hemingway e tinham medo de tanto desgaste não houvesse mais peixe, não existisse mais troféu, tudo se tivesse transformado em pó e sido levado pelo vento: esperanças, sentimentos...
Ambos buscavam um gesto, por menor que fosse, de um ou de outro, sem orgulho, medo ou receio, que mostrasse um sim sutil, real e verdadeiro.
Um dia aconteceu. Uma fresta de sol brilhou no relacionamento.
Como só as mulheres têm o dom do decote, coube a ela mostrar. “Quero ler e analisar o que escreve”. Coube a ele esperar, sonhar, devanear, como os homens fazem, agora consciente que outras duas vezes existiram, e eles não souberam ver. Essa vez que nascera agora, ou desabrocharia sentimentos guardados, ou, quem sabe, os manteria no impasse, que talvez fosse a essência do seu viver.
Tão importante quanto um pretenso sim, ou a intenção de fazê-lo acontecer, é a aceitação deste, pois é nisto que se baseia todo o desgaste inicial, o medo do não!
O não, tão curto, tão real, impões limites, e para uma alma que sonha, para um coração que sente, isto é uma tragédia! Onde está o sonhar em um mundo com fronteiras? Onde está o sentir em um mundo cheio de porquês? O sentir é a própria ausência de explicação lógica do desencadeamento dos fatos, para viver o absurdo lógico da seqüência de emoções.
Ela, uma psicóloga, iria analisar os escritos e veria que, ao invés de românticos, onde o sentimento é explorado ao máximo, às vezes doce, outras rude, algumas raivoso, como uma única melodia, iria encontrar textos barrocos: várias interpretações, vários sentimentos, várias idéias, todos juntos, em uma única e maior música, onde, se cada idéia, se cada sentimento for uma melodia, todas coexistem em contraponto, talvez tocadas por vários instrumentos, como uma obra concertante bachiana.
No meio desta balbúrdia de sons, tem-se várias interpretações, no meio deste descalabro de idéias tem-se inúmeras leituras, sem dúvida. Ao ler e analisar, como ao tocar e interpretar, é-se obrigado a dar parte de si, mostrar de alguma forma o seu eu; é um ato exibicionista, como o botão solto do colo dos seios.
Falta o sim, a aceitação, a compreensão e o sonho. Por que não transformar em sons as palavras ?
Resolveu dar a ela as musicas de Bach, que ele toca, mas tocadas por outro, de forma que pudesse guardar , ouvir, sentir na sua intimidade, sem a sua presença indiscreta. Um disco lembraria a ela, quando o tocasse, que é o repertório dele, que gostaria de tocar na sua intimidade, na impossibilidade disto, dar-lhe-ia um disco, para que ela o sentisse na hora, da forma e do jeito que quisesse. Pareceu-lhe, essa, uma boa forma de sim.
Havia uma outra possibilidade que a doutora, no alto de sua sapiência, com o jargão psicanalítico, resolvesse apenas analisar o texto e o fato. Azar dela ! Para tanto, ela havia levado um pedaço da intimidade dele para casa, como o momento furtado da visão de seus seios, e ao mesmo tempo teria sua música para embalá-la nos momentos solitários. Aí seus sonhos seriam somente seres, mas quem sabe com quais personagens ?
Para um artista que vende sonhos, ilusões, momentos, participar neles é o máximo – talvez isto se baseie o exibicionismo do escritor, músico ou pintor que desnuda das roupas, mostrando sentimentos, seus recônditos mais íntimos para que qualquer um possa ver, poucos entender e alguns sentir ou sonhar. Sem dúvida é o ápice da glória, saber, de alguma forma ou de outra, que foi alvo dos pensamentos, sentimentos ou sensações mais íntimas de alguém, mas isto não é tudo na vida!
No dia em que foi encontrar-se com ela, em que iria saber o resultado da análise, em que... logo pela manhã, foi caminhando com calma e a inexorável certeza do rumo do desconhecido, ou, talvez, com a certeza desconhecida que a inexorável ordem dos fatos jamais mudaria, num misto de angústia e torpor. Viu as horas do dia transcorrerem, até a hora fatídica, apesar da esperança de um fato novo modificar o presente. Guardava em si a desolada certeza de o mundo era o que era, como era, e que nunca mudaria, pois as dinâmicas em volta pareciam-lhe imutáveis, arraigadas, enquanto seguia sua vida no trágico balé dos espelhos, procurando libertar-se das imagens criadas por ele mesmo, pelos outros, e que não condiziam com a realidade. Mas.. . se ao menos um raio de luz surgisse, uma gota de compreensão, já se daria por satisfeito.
O encontro foi como um desabrochar. Ao vê-la, sorriu, e a recíproca foi verdadeira; no habitual mutismo que antecede qualquer conversa séria, ele percebeu que os olhos dela sorriam, transmitiam a felicidade daqueles que sorriem com os olhos. Ele sabia que os olhos, muitas vezes, são a porta da alma. Tentou lembrar que havia problemas a solucionar naquele momento, na esperança de que o otimismo que lhe assolava com a luz do olhar dissipasse, mas este era maior. Não se consegue tapar um sol por mais que tente.
Esperou pacientemente pela análise, Em algum momento ela teria que fazer.
Enquanto ela falava, sua mente voava. Além da tábua de valores que tão ardilosamente pretendia roubar dela, dos sentimentos e sonhos que pretendia criar, pensou consigo o que era mais importante.
Antes que respondesse essa pergunta, ouviu:
Gostei muito do que escreves, tudo é muito bonito! O que escreves é como se houvesse brasas nas páginas, algo realmente bombástico!
Ele ficou feliz. Havia conseguido chamar a atenção pretendida, o raio de luz havia brilhado.